Ascensão e queda do Dólar
Segue-se a versão alargada do artigo publicado na revista Exame em Janeiro de 2005
Por André Ribeiro
O dólar é a melhor exportação que os Estados Unidos jamais fabricaram. Desde o ano 2000 as reservas cambiais mundiais subiram de $2 triliões para $3,5 triliões. Este aumento é semelhante aos défices comerciais americanos no mesmo período. Do total das reservas, $2,3 triliões estão em dólares. A queda do bilhete verde tem sido temporariamente contida especialmente por compras dos bancos centrais asiáticos, que desde 2000 duplicaram as suas reservas cambiais e agora detêm dois terços do total.
O principal motivo para estas compras estrangeiras de dólares é que para compensar a falta de procura interna na Ásia e Europa, é necessário crescer através de um aumento das exportações. Para esta estratégia funcionar os países cujas economias dependem das exportações necessitam de manter as suas moedas baixas em comparação com o dólar americano ou evitar que este caia, para manter a competitividade exportadora.. O Japão e a China lideram as compras de dólares, as suas reservas cambiais são de $820 biliões e $514,5 biliões respectivamente, na sua maioria em moeda americana.
Grande parte dos dólares adquiridos são usados na compra de Obrigações americanas, enviando dólares de volta para os EUA. Estes países acabam por funcionar como credores permitindo ao governo americano financiar-se e manter taxas de juro baixas o que ajuda os americanos a consumirem bens asiáticos.
Sem a intervenção dos bancos centrais asiáticos, a América não seria capaz de financiar os seus défices sem taxas de juro mais altas ou sem uma queda maior do dólar para níveis inferiores aos actuais. O preço desta política é o exacerbar dos desequílibrios internacionais e a expansão da oferta doméstica de moeda de cada um destes países, acentuando o seu ciclo económico expansivo e recessivo.
Se os bancos centrais apenas pararem de comprar a moeda americana, algo que é cada vez mais provável com as recentes quedas acentuadas, o dólar pode cair mais 50%. Se começarem a vender as suas posições, há o risco de um colapso da moeda e da procura do consumidor americano, que se vai reflectir globalmente. Nesta segunda opção, a queda do dólar para além de diminuir a competitividade exportadora dos outros países, vai levar a que os bancos centrais percam biliões no valor das suas reservas cambiais e instrumentos de dívida americanos.
Já se iniciou o movimento de afastamento do dólar que apesar de estar a começar, cada vez conta com mais apoiantes. Os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) falam na mudança do pagamento do petróleo para Euros em vez de dólares. Começou com o Iraque no início da década, a Arábia Saudita está a considerar esta mudança, tal como a Venezuela e a Indonésia. A China, a Índia e a Rússia já começaram a diversificar as suas reservas para euros e mesmo ouro.
Da libra ao dólar
No século XVIII a Inglaterra era a maior economia do mundo ocidental, Londres era o centro internacional do comércio e finanças, a Libra Esterlina era convertível em ouro e a moeda de reserva, a divisa mais importante do mundo. No final do século XIX, os EUA, tinham-se tornado a maior economia do mundo, uma posição solidificada pelas guerras europeias entre os anos 1880 e 1940. Em 1944, o Acordo de Bretton Woods estabeleceu o dólar americano como a moeda de reserva mundial e nos anos 1960 tinha tomado o lugar de destaque. O dólar americano passou a ser a nova moeda de reserva do mundo, representando 60% das reservas cambiais dos bancos centrais, o dobro das reservas em libras esterlinas.
Actualmente em percentagem do total das reservas cambiais mundiais, os dólares americanos representam 65%, os euros cerca de 20%, enquanto que o resto se encontra em ienes, libras esterlinas, francos suiços e outras moedas. É a razão pela qual a maioria das matérias-primas, como o petróleo, cobre e café, têm os preços de referência em dólares.
A Reserva Federal Americana, o banco central que emite a moeda de reserva, encontra-se numa posição vantajosa. Os Estados Unidos podem pagar as suas importações em dólares e financiar-se com taxas de juro baixas e na sua própria moeda. A Reserva Federal pode forçar os outros bancos centrais a aumentarem as suas reservas de dólares, ou a verem as suas moedas valorizar-se senão o fizerem.
A vantagem de poder emitir a moeda de reserva do mundo, provou ser uma responsabilidade demasiado grande para ser gerida por um só país. Em 1930 quando o dólar começou a conquistar o seu lugar de destaque, os EUA eram o maior credor do mundo, hoje são o maior devedor. A ilusão de que a Reserva Federal pode criar prosperidade através da criação de moeda e dívida está a começar a ser desfeita.
Nos últimos três anos o dólar caiu 35% face ao euro e 24% contra o iene, mesmo assim o défice comercial americano continua a aumentar. Em 2003 o défice da balança de pagamentos foi de $531 biliões, e excederá os $630 biliões em 2004 segundo o Fundo Monetário Internacional. No mundo só há nove países com um Produto Interno Bruto (PIB) superior a este valor. O défice já ultrapassou os 5% do PIB e continua a crescer, vários estudos económicos mostram que quando este nível é ultrapassado, segue-se uma correcção significativa da moeda do país em 20%-30% ou mais. Para 2006 a OCDE prevê uma subida para os $825 biliões, ou seja, 6,4% do PIB americano. Além disso, o governo americano gasta mais do que recebe. Em 2004, de acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA, o défice orçamental alcançará os 3,6% do PIB, ultrapassando os $400 biliões de dólares, o maior da história do país.
Para além dos défices gémeos da balança de pagamentos e orçamental, ainda estão a financiar uma guerra. Para pagar tudo isto a Reserva Federal Americana tem vindo a criar cada vez mais moeda. E por isso o dólar está em queda.
Americanos consomem poupanças
A locomotiva do mundo tem sido o crescimento da economia americana, à frente da Europa e Japão, mas a expansão está desiquilibrada. O valor do dólar desempenha um papel central na economia global. Globalmente entram fluxos de bens e serviços nos EUA e saem fluxos de dinheiro. Sem o acréscimo do consumo americano a economia mundial provavelmente não estaria a crescer ou estaria mesmo em recessão. Mas, para manter o estilo de vida americano, em 2004 foram necessárias 75% das poupanças de todo o mundo. Isto não pode durar para sempre.
Os EUA precisam de $2 biliões por dia dos estrangeiros para poder realizar importações de forma crescente e é através de crédito que financiam os seus défices. A taxa de poupança doméstica dos norte-americanos diminuiu constantemente de 12,5% do PIB em 1981, para os 0,2% em Setembro de 2004. O país não pode continuar a investir com uma poupança de zero.
Entre as potências económicas o Banco Central Europeu (BCE) é a única autoridade monetária que até ao momento não se mostrou disposta a defender a sua moeda. O resultado é que ficou no meio da manipulação mútua praticada pela Ásia e os EUA. Mas o BCE ainda pode vir a intervir nos mercados cambiais e tem outra arma importante, a possibilidade de baixar a sua taxa de juro.
Para o BCE, a inflação é o objectivo político número um e por isso a estabilidade da taxa de câmbio é fundamental. Isto é importante, porque é precisamente esta estabilidade que tem destacado e continuará a destacar o euro do dólar. Esta política está a tornar o euro mais atractivo como moeda de reserva preferencial. É verdade que o crescimento real do PIB europeu tem sido menor que o americano, mas em dólares o peso económico da zona euro tem crescido em relação aos EUA nos últimos cinco anos. A União Europeia, ao contrário da América é credora com o Resto do Mundo.
O caso da China é distinto ao da UE e Japão, a desvalorização do dólar permite-lhe manter a sua competitividade, porque desde 1995 fixou a sua moeda o yuan – ou renmimbi – em aproximadamente 8,3 yuans por dólar. A sua indexação significa que cai na mesma proporção que o dólar face às outras moedas. Apesar das pressões internacionais para uma valorização da sua moeda e o fim da indexação, o sistema financeiro do país não está pronto e o governo chinês não parece ter pressa. Supostamente em 2007 a China terá de deixar flutuar a sua moeda, devido a um tratado da Organização Mundial de Comércio. Provavelmente deixarão a sua moeda flutuar em bandas, tentando controlar o seu movimento e impedir que se torne muito volátil.
Não há saída fácil para a situação actual. A forma de ajustamento do dólar vai determinar a dimensão do impacto para as economias. É duvidoso que seja feita de uma maneira suave, pelos governos. A queda do dólar nos últimos dois anos só é comparável ao trambolhão na segunda metade dos anos 1980 quando o índice da moeda americana em relação às moedas dos seus principais parceiros comerciais caiu de um máximo de 144 em Março de 1985 para um mínimo de 84,5 em Abril de 1988, uma queda de 40%. Durante esse período de tempo o Dow Jones duplicou de 1300 pontos para mais de 2600 antes do crash de Outubro de 1987. O défice da balança de pagamentos é agora quase o dobro dessa altura, por isso, a queda ainda maior do dólar e as suas consequências nos outros mercados financeiros pode ser bem maior.
Para corrigir os gastos excessivos há duas vias, a da disciplina orçamental ou a desvalorização da moeda. A América está a optar pela segunda. As autoridades americanas têm afirmado que seguem uma política de dólar forte, mas não têm feito nada por isso.
Nos próximos anos o dólar vai continuar a cair. Uma moeda em queda traduz-se numa subida dos preços das importações, o que leva ao aumento da inflação e consequente subida das taxas de juro. Se a Reserva Federal subir as taxas demasiado e com demasiada rapidez, a economia poderá entrar em recessão. Se mantiver as taxas de juro baixas, a inflação subirá e o dólar cairá mais. Alguns economistas pensam que para cortar o défice e estabilizar a dívida externa, a moeda americana precisa de cair mais 30%. Isso implicaria uma taxa de câmbio de mais de $1,70 por euro. É pouco provável que esta queda seja ordenada, mas sim que haja uma crise. Nunca uma recuperação económica sustentada ocorreu durante uma queda da moeda.
Grandes investidores apostam contra o dólar
Grandes investidores como Warren Buffet, Sir John Templeton e George Soros têm vindo a avisar sobre a queda do dólar e a investir de acordo com essa convicção.
George Soros que, em 1992 ganhou $1 bilião em alguns dias, apostando contra a libra, disse em meados de 2003, que acreditava que o dólar ia perder 30% nos próximos anos. Sir John Templeton, que segundo a revista Forbes ganhou mais de $100 milhões apostando contra as empresas de internet em 1999 e 2000, afirmou numa entrevista que o dólar iria cair contra outras moedas.
Em Outubro de 2003, Warren Buffet escreveu um artigo na revista Fortune com o título sugestivo de “Porque motivo não estou a comprar o dólar americano”. O segundo homem mais rico do mundo afirmou que,“Até à primavera de 2002, tinha vivido quase 72 anos sem comprar uma moeda estrangeira”. Essa posição mudou rapidamente, em 2003 Buffet investiu $9 biliões de dólares em divisas estrangeiras e no primeiro semestre de 2004 a sua aposta contra o dólar subiu para $19 biliões.